Água das chuvas
Quando eu era criança, tinha muito medo de chuva...
Qualquer chuva, mas em especial, daquela que caía à noite,
com relâmpagos e trovões...
Espelhos cobertos, vasilhas aparando as goteiras ...
Minha mãe dizia que o trovão era voz de Deus, zangado,
porque fizemos alguma coisa errada. Em silêncio eu Lhe pedia perdão...
e lutava para o sono não me vencer naquela frágil vigília.
Tinha medo de a chuva destelhar a casa e a enxurrada nos levar para longe.
Nas noites de chuva, chorava debaixo do cobertor,
pensando nas pessoas que andavam pelas estradas, sem abrigo.
Pensava em meu pai que longe de casa trabalhava, nos trechos,
como um servidor público de um departamento de estradas e rodagens.
Será que estava molhado? Estava com frio?
A impossibilidade de saber notícias sua, naquele momento,
aumentava a quantidade das minhas lágrimas
e a dor era um nó em minha garganta.
Chuva memória!
Cresci!
A chuva continua a me trazer sentimentos tristes.
Luzes e buzinas nessa cidade grande
Dentro do carro,pingos de chuva no pára-brisa..
Pessoas nos pontos de ônibus buscando abrigo
pés encharcados dentro dos sapatos...
A roupa molhada sobre a pele...cheiro de umidade
Frio no corpo e n`alma!
A chuva ainda a cair!
Sinto pelas pessoas que estão em situação de rua
Sinto pelas ruas e seus trapos, entulhos, dejetos sociais
E eu aqui, ilhada, solidão
Chuva lamentação!
E essa vontade imensa de estar em casa,
Se pudesse, você, meu edredom!
E a chuva passou no tempo levando consigo as moradias
Casa (im)própia dos condenados!
Condenadas casas
Diluídas nos sonhos da alforria habitacional
Vidas soterradas! "Que sirvam de exemplo!", disse o alcaide
Não foi culpa da chuva.. ! Faltou a alvenaria, a viga.
O pobre sabe que faltou a cidadania!
As águas volumosas e a chuva têm de mim os mais
puros sentimentos de medo e respeito
Pelas vidas que se foram para os reinos fluviais dos encantados.
Velho Chico, Opará!
Orar, orar pelos povos de quem lhes foram retirados o chão dos seus pés.
Tumbeiro de desterrados , entre o céu e o mar
E se chove? Entre as águas, as lágrimas dos ébanos transatlânticos,
one more time!
À deriva!
Redivivos em terras estrangeiras, quando se lhes acontece
Em outras terras (sobre)viverem!
E assim compreendo que essas águas são a metáfora da vida
Água nutriz que nos orna no lar uterino
Água início e fim..dialética
Águas benditas soluçadas nas preces sertanejas
Água profética que arrebenta a semente
Água planta
Água benfazeja...assim seja. Água!!
E essa sede de viver
E esse medo que nunca passam... !
Foto: William Ferreira Carvalho