A Casa de D. Tiana!



                        É comum ouvirmos, em relação à escola, essa frase;" é a minha segunda casa".  Não discordo, cada um tem a sua ordinal lista afetiva. A minha segunda casa ficava na minha rua Itaberaba(Itapetinga-Ba), na mesma quadra: A casa de D. Tiana. Ali foi o espaço da minha adolescência,  o lugar dos risos, das leituras, das aprendizagens pedagógicas, reforços escolares, festa natalina. Década de 70. Aquela família chegou à nossa rua. O casal D.Tiana e seu Nino com seus quatro filhos ( Mário, Manoel Messias "Natal", Joaquim Neto, Rosimar) e Dinha (D.Purcina), irmã da dona da casa.  D. Tiana (Sebastiana) era uma mulher negra, alta, bonita  A cor de sua pele nos ligava ao vínculo ancestral diáspórico e também pelo acolhimento, pelo carinho dispensado a mim e a todos. Não reclamava quando a casa se enchia de meninas e meninos vizinhos que ali estavam para assistir à programação televisiva. Aquele aparelho era um objeto de luxo. Por isso , no lado de fora, a janela ficava repleta de rostos que quase se colavam um ao outro  na disputa pelo espaço, anteriormente marcado com pedras, pedaços de tijolos, enfim. Não importava o calor, o empurra-empurra e sim, assistir à  "Seres do Amanhã", "Viagem ao fundo do mar", "Tarzan". E a novela "Irmãos Coragem? O que era aquela trilha sonora da abertura? "Manhã..despertando lá fora...Manhã, já é sol, já é hora ...e os campos se abriram em flor...". "Esse programa é um oferecimento da Farinha de Trigo BAISA", esse passou a ser o apelido de Maisa (in memoriam) filha de D. Nalvinha. Aquela, com seus cabelos amarelos cor do sol, zangava-se diante daquele bullying (não era assim chamado naquele tempo, claro). Outros nomes faziam parte do pequeno grupo juvenil da minha saudosa rua. Às vezes, aconteciam rusgas e "ficávamos de mal". Juntavam-se os dedos indicadores para a imperativa ação do: "Parte aqui". O(a) desafeto com apenas um dedo cortava o ar em direção à ponte digital e desfazia aquela união. Cancelamento, desterro, solidão...exclusão das brincadeiras. O tempo tratava de resolver a situação e isso podia durar horas, dias, semanas, meses para que a harmonia se restabelecesse com um; "Vamos ficar de bem?" Vamos!!!!. 
            Precisávamos comentar a novela, o filme, o desenho animado, as experiências escolares, o futebol, a coleção de figurinhas para o álbum, a compra da próxima revista "CONTIGO" que trazia sempre um pôster de um arista... as fotonovelas da revista " ALMANAQUE GRANDE HOTEL" com seus artistas italianos ( Franco Gasparri, Katiuscia ..). Quanto mais plateia, melhor. Quantos letramentos naquelas oralidades! Por falar em novela, era um  sofrimento  quando perdíamos um dos  capítulo da trama de Janete Clair. O ator Tarcísio Meira (João Coragem), minha primeira paixão platônica, estava estampado em foto a ocupar a parede do meu quarto e a minha imaginação. Por mais que ele tenha envelhecido e encerrado sua jornada aqui na Terra, para mim, a sua imagem será, eternamente, a do "João Coragem". São aportes de memórias que nos atam às lembranças poéticas, necessidades cotidianas para se viver neste mundo de injustas realidades. Naquele tempo, antes da apresentação da novela, aparecia a imagem de um documento. Era o ateste de que o programa fora liberado pela Censura Federal, para nós, na inocência política, era apenas mais um atraso a retardar as emoções daquele folhetim. Voltando à casa de D.Tiana, lembro-me de um armário com suas portas: metade madeira, metade vidro, de onde se viam duas enciclopédias. Quando a Tv estava desligada e aquela fantástica senhora a costurar em sua máquina SINGER, eu aproximava com olhos de pedinte e ela me perguntava: O que você quer "Têco terecotêco?"-Ríamos e eu lhe pedia para "folhear" um daqueles livros. 

Ela, prontamente, me atendia. Dinha (In memoriam), sempre aborrecida, olhava-me de maneira atravessada e me perguntava: "Você não tem casa, não?". Hoje, essa pergunta me soa filosófica, rsrs. A casa pode ser qualquer lugar onde somos queridos. D. Tiana respondia: "Deixa a menina, Dinha". Mais que o carinho , era a sua defesa, era a proteção que ela nos oferecia,  Depois desse constrangimento, o mais importante era abrir o livro que estava em minhas mãos. Ali, eu podia viajar por diversas paisagens, conhecer países, as bandeiras, suas capitais, outras gentes, palavras novas, a literatura, o mundo estava a poucos centímetros dos meus olhos e profundamente introjetado nos meus sonhos. Quando, mais tarde, na minha identidade de professora, me vi em países estrangeiros por lazer ou em algum evento educacional, sempre tive a sensação de que já estivera ali. E estive! Assim, concordo plenamente com Paulo Freire quando ele nos diz que "A leitura de mundo vem antes da leitura das palavras". Assim, "A Casa de D.Tiana" foi a minha segunda casa, a minha escola, o meu passaporte, o meu refúgio, a minha comunidade. Há muito aquela amorosa senhora nos deixou, fisicamente, mas trago em mim essas lembranças como uma certeza de que a imortalidade sempre estará em nossos atos e no legado que eles produzem. 

 À D.Tiana (in memoriam), com profunda gratidão!

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