Primeiramente, nos anos 70 , a mercearia ficava ali na rua Potiraguá, se
localizava na esquina com a minha rua Itaberaba, depois, mudou-se para o lado
oposto daquela rua e se instalou perto da casa de D. Adélia. Era uma casa
comercial, com seus balcões de madeira, altos para a minha idade, de onde, em
visão oblíqua, eu prestava atenção naquele senhor sempre sério a nos
“despachar”. Aquele estabelecimento também representava as oscilações
financeiras da minha casa. Minha mãe saía cedo para o rio Catolé, onde se
juntava a outras lavadeiras em suas funções cotidianas de complemento da renda
doméstica.
Meu pai, funcionário do DERBA, geralmente estava pelos trechos,
longe de casa, a trabalhar. Nos dias de dinheiro escasso, minha avó, a quem
chamávamos afetivamente de “mãe véia”, juntava os valores ¬ gratificações que recebia das genitoras por rezar os quebrantos das suas
crianças ¬ e me encarregava de ir comprar óleo, açúcar , café , a exemplo, em
pequenas quantidades, ou a retalho como bem se diz. Minha mãe, ao chegar do rio,
com as mãos castigadas pela água e sabão, encontraria num gole de café fresco um
pequeno conforto.
A ida à mercearia poderia ser feita num pequeno percurso,
sempre sob as recomendações anciãs para “ir devagar”, “não correr”, não parar
“na casa dos outros” e trazer o que se pedia. Frases imperativas parcialmente
obedecidas. Para as crianças qualquer espaço geográfico pode se transformar no
mais extenso e fantástico território. Ao chegar à “venda”, solicitava os itens
recomendados e ficava a observar: a balança, os pesos sendo ajustados , o pó de
café colocado sobre um papel pardo e os dedos hábeis de S. Vavá atando as pontas
laterais da embalagem numa rápida dobradura que deixava o pacote em formato de
uma meia lua. O mesmo acontecia com a embalagem do açúcar. O óleo, esse passava
por um medidor e a quantidade depositada no copo dependia do valor mencionado
pelo cliente.
Ás vezes, na porta do estabelecimento, estava parado um caminhão e
seu enorme baú, onde estava grafada em letra enorme a palavra “Neusa”. Havia uma
beleza na distribuição estética desse substantivo e, especialmente, na sua letra
“a”: essa vogal se estendia num prolongamento artístico enlaçando aquele nome e
minha imaginação. Era o “carro dos doces”. Os homens a “descarregá-lo”, as
caixas, os pacotes, a mercadoria que depois estaria exposta num baleiro __com
várias divisórias de vidro e suas tampas de alumínio__ que girava como um
carrossel a exibir seus doces coloridos em vários formatos e sabores: “Geleia”,
“Maria-mole”, “peito de moça”, “atum”(risos). Tudo. Tudo e muito mais estava ali.
Em casa, enquanto dormíamos, minha mãe ficaria parte da noite a passar a
ferro. Talvez eu sonhasse e, no sonho, saberia que , pela manhã, eu
entregaria a roupa em seu destino e, se a patroa pagasse, minha mãe me daria
moedas como uma pequena recompensa. A mercearia estaria a me esperar, eu
correria pra lá, entraria... giraria aquele baleiro e, numa alegria
inconfessável, diria: - Quero esse!