Este blog é um refúgio para as palavras loucas que sempre me convidam para com elas bailar
sábado, 24 de janeiro de 2009
Lady Kate e a “pobremática” da educação escolar
por Terezinha Oliveira Santos
O humorístico "Zorra Total" (Rede Globo) pode ser considerado uma pausa para o riso nas noites de sábado de muitos telespectadores. O programa ganhou alguns pontos de audiência com o surgimento da personagem "Lady Kate", que caiu no gosto da maioria da população que se diverte com a "loira" e seu fiel escudeiro, Glauber. Mais do que uma sátira, Lady Kate pode ser vista por vários ângulos sob o aspecto da temática identitária, um dos assuntos amplamente discutidos dentro das Ciências Sociais, no contexto da pós-modernidade.
Na categoria de gênero, "Lady" é uma mulher que assumiu por um tempo a identidade de prostituta na casa de "Madame Sofia", e graças à proteção de um senador, emerge daquela representação, num outro patamar social no qual possui dinheiro, logo tem outro poder e nesse deslocamento é levada a buscar um lugar na high society. Embora situada em um tempo histórico no qual tudo pode ser mercantilizado, a moça, com o capital financeiro, não consegue comprar o seu capital cultural , daí as suas várias tentativas naquele empreendimento e a sua frustração proveniente da disjunção dinheiro x glamour.
Fazendo uso da língua portuguesa em sua variedade não-padrão, a personagem comunica-se, a seu modo. Sua pronúncia do "Grauber", apesar de estigmatizada, encontra seus pares na linguagem de muitos por esse Brasil naqueles que de alguma forma, se identificam com a "parole" de Lady, e não só nesse aspecto. "Grauber", ao invés de Glauber, "prano", no lugar de plano, não se constituem erros. Se os textos literários são a referência para a norma culta padrão, esse encontro consonantal, um fenômeno denominado rotacismo[1], explicado pela passagem do latim ao português, aparece em "Os Lusíadas", escrito por Camões no século XVI, atestando um processo ainda vigente na história da formação de nossa língua
Kate está hibridamente localizada na tentativa de ser uma "Lady" cujo passado é por ela retomado a todo instante, nas lembranças, coma "presença"da prima Bebel[2] como receptora invisível e silenciosa de uma interlocução via telefone celular e a do amigo e "brother" Salsichão. No entanto, é o seu "personal style" que a todo o momento a incita a distanciar-se dessas pretéritas imagens marginais e dar o "salto" para o centro. Entre o passado e o presente, a personagem se deixa levar pelas futilidades do consumismo, mas recobre sua razão diante das "injustiças sociais", em especial àquelas direcionadas ao seu "bródi" sempre inserido no contexto atuacional e visibilizado por Lady, como um ícone representativo de seu passado que ela não pode e não quer esquecer. Em defesa de "Salsichão", a personagem rodopia e abre mão de todas as aproximações que a permitiriam adentrar a "terra prometida", ou seja, o território do "grand monde". O dinheiro é a espada com a qual a defensora loira e poderosa se coloca ao lado dos fracos e oprimidos.
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Apesar de toda a sua sensibilidade, em nenhum momento Lady Kate procura o seu glamour via letramento escolar. Talvez, porque em sua condição de "nouveau riche" , a cultura letrada possa ser vista como algo indispensável. Se ela quiser, pode até comprar uma universidade e ali se instalar como reitora. Um fato também comum, em nossa realidade quando o ensino mercantilizado está, em alguns casos, em mãos de empresários. È sabido que, a um preço razoável, pode se comprar um histórico escolar e pôr em funcionamento uma escola de ensino fundamental ou médio ou uma faculdade de "ponta de esquina", cujo compromisso pedagógico com seus alunos pode ser resumido, em muitos casos, no "pagou,passou".
Entretanto, para muitos alunos, a escola deixou de ser vista como o caminho que os levaria a "ser alguém na vida". Vítimas de um ensino que não lhes garante a autonomia da leitura e da escrita, para muitos jovens aquele espaço pedagógico passa a ser o lugar do "não-sentido". A linguagem da escola é uma e a vida lá fora, na sua dinâmica, os impõe outros textos. É nesse truncamento que se interpõe a maioria dos conflitos e a situação de "alienígenas" entre os sujeitos do ensino e da aprendizagem. O abandono escolar torna-se iminente para os educandos pela necessidade de adentrarem o mundo do trabalho cada vez mais representado por empregos alternativos.
As vagas oferecidas pelo mercado trabalhista requerem habilidades ausentes na maioria da população pobre, uma categoria social associada ao quesito étnico-racial e com isso entra em cena o item da aparência. Na disputa por um cargo no setor privado não basta ser jovem ou ter uma escolaridade, um (a) candidato(a) branco(a) tem mais chances de ser selecionado(a) que um negro(a).Em nossa cidade,basta olhar nos grandes "shoppings" ou outros conglomerados a massa populacional que ocupa a "linha de frente" e os que fazem os chamados "serviços gerais".
A conclusão da escolaridade básica torna-se, para muitos educandos, uma etapa de composição curricular que eles precisam obter para entrar em outra escola e ali adquirir uma profissão, haja vista, a lei da oferta e da procura nos cursos de telemarketing, auxiliar de enfermagem, manutenção de computadores, citados aqui como ilustração. Outra saída é a procura por uma vaga no setor público, o que corresponde a necessidade de um investimento de tempo e dinheiro para a devida preparação diante da crescente concorrência naquele aspecto.
É comum se ouvir que todos podem ascender socialmente, depende apenas do seu esforço pessoal. Em relação a esse pensamento, é pertinente o discurso de Milton Santos[3],quando esse afirma
"Acho um enorme equívoco. Quando dizem isso, fazem um enorme mal à comunidade negra. Fica parecendo que para ficar milionário basta fazer esforço e que a questão pode ser tratada na base do voluntarismo. Neste final do século 20, quando a referência tem um papel evidente que certas formas de esforço são importantes e devem ser mostradas. Mas é importante mostrar também o mecanismo social que leva a isso."
Trazendo o "esforço pessoal" para o contexto da Educação de Jovens e Adultos é notória a internalização dos processos excludentes na vida daqueles educandos, a começar pela dificuldade em adentrar ou permanecer numa escola regular, seguida pelas conseqüências advindas do frágil letramento a que estão submetidos. Para muitos, voltar às aulas nos cursos noturnos, depois de um dia de trabalho, significa recuperar o tempo "perdido", enquanto para o aluno E.R.S (27 anos)[4] é a chance de aprender o "português legítimo".
O desejo daquele educando reforça o imaginário do bem falar e escrever pautados por uma norma padrão que configura à língua portuguesa uma unidade lingüística, em detrimento da sua variedade e que por algum tempo teve na língua literária sua representação como um ideal a ser perseguido. Quando a escola, em seus documentos oficiais, passa a reconhecer a diversidade lingüística brasileira, tal situação pode significar um passo à frente para muitos educandos que adentram aquele espaço. A escola tem por função promover um ensino de língua materna que contemple suas variantes, contextualizando-as e levando o aluno à reflexão crítica daquela ferramenta comunicativa em seus aspectos sócio-políticos e culturais.
Na perspectiva de uma pedagogia multiculturalmente sensível que defendo, creio que necessário se faz com urgência, uma reformulação nos cursos de formação inicial, principalmente que se dê ênfase aos conhecimentos dos processos de alfabetização em consonância com a sociolingüística do português brasileiro. Tais conhecimentos deveriam compor a grade curricular não só do curso de Pedagogia, como também o curso de Letras, para que (o/a) futuro (a) professor (a) egresso (a) daquelas áreas de conhecimento pudesse ter uma melhor compreensão das dificuldades inerentes ao ensino/aprendizagem que certamente alguns educandos se lhe apresentarão em sala de aula.
A condição de analfabetos funcionais a que temos condenados a maioria dos educandos da escola pública, um espaço onde a comunidade negra compõe a densidade populacional, não nos permite pensar num mundo melhor, principalmente diante dos avanços tecnológicos com o qual a humanidade tem se deparado. Nesse mesmo mundo mediado pelo consumo, no qual tudo está à venda, o dinheiro pode comprar tudo, ou quase tudo, pois o conhecimento letrado ainda pode ser concebido como um empoderamento e um bem inalienável. Continuaremos a rir de Lady Kate, certamente, em suas "gafes" e tropeços lingüísticos de toda a ordem, o que não tem graça é a zorra em que vem se transformando a educação pública, de um modo geral.
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[1] Bagno.M. A Língua de Eulália, Parábola,2007.
[2] Uma garota de programa, vivida pela atriz Camila Pitanga, na novela "Paraíso Tropical" de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, exibida pela Rede Globo em 2007.
[3] Em;http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=redacao/temas/docs/negronobrasil: Acessado em11 de novembro de 2008
[4] O aluno assim me respondeu quando questionado acerca dos seus objetivos na sala de aula da EJA, no curso Aceleração(7/8ª séries),em 2006.
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